segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.

Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Aprendendo a calcular

Ok, Cláudia, vamos lá. Quantos casados, realmente felizes com esta condição, você conhece? Sem enfeitar, por favor.

- Fala desse jeito, mas aposto que se casa logo (risos).

Não desconverse.

- Tudo bem. Uns três casais.

Pois então. Pegue todo o universo de casais que você conhece e faça as contas. Quanto daria isso? Nem um por cento, garanto.

- É porque as pessoas não dão mais crédito ao amor e isto piora a cada dia.

Se eu dissesse a você o seguinte: amiga, tem um negócio que eu gostaria muito de abrir e queria que você fosse minha sócia. Só existem alguns problemas....ele só dá certo em um por cento dos casos, o investimento é altíssimo e a única maneira de descobrir se vai dar certo é tentar. Aceitaria?

Game over.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Não quero ser taxada como retrógrada, mas se eu for, paciência. Não será isso que me impedirá de fazer breves comentários sobre o que anda me tirando o sono.
Já perceberam como a presença maciça da tecnologia no cotidiano está mudando os comportamentos e as formas de se relacionar? Parece óbvio...talvez até seja mesmo, mas quem disse que o óbvio prescinde de reflexão?
Sem a intenção de ser nostálgica, vou fazer algumas comparações com o passado, para tentar me situar nessa metamorfose toda.
Amizade.
Antes - Amizades eram construídas com bases sólidas, que levavam anos para se firmarem e que só acabavam sob fortes razões. Numericamente, eram poucas. Um milhão de amigos era (na minha concepção ainda é) coisa para música do Roberto Carlos.
Hoje: as amizades obedecem a ciclos de vida, que podem durar anos, meses, dias ou apenas algumas horas. Tudo depende das circunstâncias.
Tem o grande amigo que você conheceu no carnaval e que nunca mais viu, o “irmão” de alma que você fez na Internet, o cara com quem você toma um chopp vez ou outra....e, é claro, aqueles amigos dos moldes ultrapassados, que escutam suas lamentações, freqüentam a sua casa, que podem ser tornar invisíveis de tão presentes.
Encontrar pessoas em diferentes situações é fato da vida e sempre foi. O que muda e me espanta é que tudo é colocado no mesmo balaio, como diria minha avó.

Amor.
Você olhava pra ele....ele olhava pra você....em pouco tempo se sabiam apaixonados (ou não). Namoravam, conviviam e, assim como hoje, a relação poderia continuar ou acabar.
Os infantis apelidinhos dos namorados eram só para os namorados.
O tratamento dispensado à pessoa amada tinha algo de exclusivo, enquanto o amor durasse. Era fácil saber quando o objeto de seu afeto destinava o mesmo sentimento a outra pessoa. O comportamento denunciava.
Amor? Existia certa singularidade no amor, o que fazia a confiança existir de olhos fechados.

Atualmente, fico atordoada. É impossível saber que regras de boa convivência estão valendo.
Não se trata, necessariamente, de tentar frear o tempo ou de me recusar a acompanhá-lo. Acontece que as coisas ao redor mudam rapidamente e, aqui dentro, ainda vigoram as coisas que aprendi, os valores que guardei.
Onde está escrito o que pode e o que não pode? Qual é a nova ordem das coisas? Esse manual é vendido na Saraiva?

A expressão do afeto.
Todo mundo se ama. Nem consigo entender a violência e a agressividade exacerbadas com tanto amor circulando por aí.
Lembram-se dos apelidinhos carinhosos? Agora são direcionados a qualquer pessoa.
Todo mundo é tchutchuco, chuchu, gatinho e todos os “inhos” que se possa imaginar.
O pior de tudo é que não existe espaço para o estranhamento. Se você ainda não se acostumou com isso, se deseja algo diferente, pode ser taxada de maluca, paranóica ou coisa pior. Pode, também, alimentar o hábito alheio de criar vidas paralelas, pois nos esconderijos não há julgamento.
As coisas se inverteram tanto, que a liberdade (da qual todos gostamos) pode ser usada como justificativa para que nenhum comportamento possa ser questionado, ainda que ele traga incômodo e sofrimento aos outros. É a era do “isso depende...” ; “isso é muito relativo...” ou “isso é problema meu”.
As coisas, propositadamente, se confundem e já não é possível definir o que são amizades, o que é apenas cordialidade e o que são relações mais próximas. As diferenças não estão marcadas. Na superfície, as fronteiras estão borradas.

E eu, amadora que sou nisso tudo, me sinto sufocada, cansada, sozinha. Qual será minha alternativa? Devo me “render”, mesmo sem me identificar, intimamente, com esses novos valores? Devo fingir que não vejo?
Ou será que ainda existem cinco ou seis por aí aos quais eu possa me juntar?
Tenho medo do que está por vir. Medo ao imaginar até que ponto teremos que nos flexibilizar para suportar tantas incertezas.
Ainda prefiro saber onde piso, enxergar as regras claramente e, se for o caso, transgredí-las com conhecimento de causa.